quarta-feira, 29 de julho de 2009

Livro - Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar

A prosa de Raduan Nassar tem definitivamente um tom poético. Dá vontade de ler em voz alta, saboreando as palavras. O próprio estilo de formatação - ele raramente usa o ponto, ligando os períodos com vírgulas e conectivos vários, alguns capítulos só tem o ponto final (!) - leva-nos a uma concatenação de ideias e imagens intrigantes. A narrativa é em primeira pessoas, e quem nos fala é André. Ele é filho de uma família do interior de São Paulo, família que vive sob a pesada moral patriarcal. André se apaixona por Ana, sua própria irmã, e acaba abandonando a casa, mas seu espírito não a abandona. E o que lemos é justamente a luta entre a tradição e a força da rebeldia - obviamente isso não acaba bem...

Duas citações:
Sobre o tempo - sermão do pai:
"...onipresente, o tempo está em tudo; existe tempo, por exemplo, nesta mesa antiga: existiu primeiro uma terra propícia, existiu depois uma árvore secular feita de anos sossegados, e existiu finalmente uma prancha nodosa e dura trabalhada pelas mãos de um artesão dias após dia; existe tempo nas cadeiras onde nos sentamos, nos outros móveis da família, nas paredes da nossa casa, na água que bebemos, na terra que fecunda, na semente que germina, nos frutos que colhemos, no pão em cima da mesa, na massa fértil dos nossos corpos, na luz que nos ilumina, nas coisas que nos passam pela cabeça, no pó que dissemina, assim como em tudo que nos rodeia; rico não é o homem que coleciona e se pesa no amontoado de moedas, e nem aquele, devasso, que se estende, mãos e braços, em terras largas; rico só é o homem que aprendeu, piedoso e humilde, a conviver com o tempo, aproximando-se dele com ternura, não contrariando suas disposições, não se rebelando contra o seu curso, não irritando sua corrente, estando atento para o seu fluxo, brindando-o antes com sabedoria para receber dele os favores e não a sua ira; o equilíbrio da vida depende essencialmente deste bem supremo, e quem souber com acerto a quantidade de vagar, ou a de espera, que se deve pôr nas coisas, não corre nunca o risco, ao buscar por elas, de defrontar-se com o que não é; por isso, ninguém em nossa casa há de dar nunca o passo mais largo que a perna: dar o passo mais largo que a perna é o mesmo que suprimir o tempo necessário à nossa iniciativa; e ninguém em nossa casa há de colocar nunca o carro à frente dos bois: colocar o carro à frente dos bois é o mesmo que retirar a quantidade de tempo que um empreendimento exige; e ninguém ainda em nossa casa há de começar nunca as coisas pelo teto: começar as coisas pelo teto é o mesmo que eliminar o tempo que se levaria para erguer os alicerces e as paredes de uma casa; aquele que exorbita..."

Diálogo de André com o pai. André diz:
"-Já disse que não acredito na discussão dos meus problemas, estou convencido também de que é muito perigoso quebrar a intimidade, a larva só me parece sábia enquanto se guarda no seu núcleo, e não descubro de onde tira a sua força quando rompe a resistência do casulo; contorce-se com certeza, passa por metamorfoses, e tanto e esforço só para expor ao mundo sua fragilidade."

LAVOURA ARCAICA - Companhia das Letras, 3ª ed. revisada pelo autor.

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