quarta-feira, 29 de julho de 2009

DVD - Lavoura Arcaica

O filme respeita grande parte da narrativa do livro. A poesia não se perde, ao contrário, é reforçada por imagens maravilhosas do diretor Luiz Fernando Carvalho (o mesmo da série Capitu). Talvez por isso o filme perca em agilidade. Não. Acho um eufemismo, ele não perde em agilidade, de fato ele é leeennnnto! Eu adorei,no entanto não recomendo a qualquer pessoa. Mesmo tendo grande sensibilidade o espectador amigo poderá não apreciá-lo. Lembro que vi o filme primeiro, há anos, depois li o livro. E não consigo dizer de qual obra gosto mais!

O filme tem Selton Mello e Raul Cortez como protagonista, dão um show, claro!

Comprei o DVD de luxo na FNAC - realmente um luxo só! Vem um folheto... não, seria um libreto? Enfim, uma pequena publicação de altíssima qualidade.

Livro - Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar

A prosa de Raduan Nassar tem definitivamente um tom poético. Dá vontade de ler em voz alta, saboreando as palavras. O próprio estilo de formatação - ele raramente usa o ponto, ligando os períodos com vírgulas e conectivos vários, alguns capítulos só tem o ponto final (!) - leva-nos a uma concatenação de ideias e imagens intrigantes. A narrativa é em primeira pessoas, e quem nos fala é André. Ele é filho de uma família do interior de São Paulo, família que vive sob a pesada moral patriarcal. André se apaixona por Ana, sua própria irmã, e acaba abandonando a casa, mas seu espírito não a abandona. E o que lemos é justamente a luta entre a tradição e a força da rebeldia - obviamente isso não acaba bem...

Duas citações:
Sobre o tempo - sermão do pai:
"...onipresente, o tempo está em tudo; existe tempo, por exemplo, nesta mesa antiga: existiu primeiro uma terra propícia, existiu depois uma árvore secular feita de anos sossegados, e existiu finalmente uma prancha nodosa e dura trabalhada pelas mãos de um artesão dias após dia; existe tempo nas cadeiras onde nos sentamos, nos outros móveis da família, nas paredes da nossa casa, na água que bebemos, na terra que fecunda, na semente que germina, nos frutos que colhemos, no pão em cima da mesa, na massa fértil dos nossos corpos, na luz que nos ilumina, nas coisas que nos passam pela cabeça, no pó que dissemina, assim como em tudo que nos rodeia; rico não é o homem que coleciona e se pesa no amontoado de moedas, e nem aquele, devasso, que se estende, mãos e braços, em terras largas; rico só é o homem que aprendeu, piedoso e humilde, a conviver com o tempo, aproximando-se dele com ternura, não contrariando suas disposições, não se rebelando contra o seu curso, não irritando sua corrente, estando atento para o seu fluxo, brindando-o antes com sabedoria para receber dele os favores e não a sua ira; o equilíbrio da vida depende essencialmente deste bem supremo, e quem souber com acerto a quantidade de vagar, ou a de espera, que se deve pôr nas coisas, não corre nunca o risco, ao buscar por elas, de defrontar-se com o que não é; por isso, ninguém em nossa casa há de dar nunca o passo mais largo que a perna: dar o passo mais largo que a perna é o mesmo que suprimir o tempo necessário à nossa iniciativa; e ninguém em nossa casa há de colocar nunca o carro à frente dos bois: colocar o carro à frente dos bois é o mesmo que retirar a quantidade de tempo que um empreendimento exige; e ninguém ainda em nossa casa há de começar nunca as coisas pelo teto: começar as coisas pelo teto é o mesmo que eliminar o tempo que se levaria para erguer os alicerces e as paredes de uma casa; aquele que exorbita..."

Diálogo de André com o pai. André diz:
"-Já disse que não acredito na discussão dos meus problemas, estou convencido também de que é muito perigoso quebrar a intimidade, a larva só me parece sábia enquanto se guarda no seu núcleo, e não descubro de onde tira a sua força quando rompe a resistência do casulo; contorce-se com certeza, passa por metamorfoses, e tanto e esforço só para expor ao mundo sua fragilidade."

LAVOURA ARCAICA - Companhia das Letras, 3ª ed. revisada pelo autor.

ILUSÕES

Às vezes, chamo meu coração à razão.
É necessário.
Basta uma distração e já foi.
Salta de meu peito,
Corre por caminhos, os mais pedregosos.

Vou atrás,
Seguindo seu rastro.
Recoloco-o em seu lugar.
Restam sempre alguns hematomas
que o tempo tentará apagar.

Outras vezes é pior.
Foge sorrateiro, pé ante pé.
E só depois de muito tempo
percebo sua ausência.

O local onde se esconde
é frio, espinhoso
é negro, cheira mal.
Não há como tirá-lo
sem que ferimentos não surjam.

Ele me diz não entender
o que lhe ocorreu.
Estava feliz,
caminhara por terras fecundas
onde todas as ilusões nasciam,
se autonutriam em um círculo vicioso.
Tudo era belo e confortável.

Então tudo mudou,
A um simples toque
tudo se desfez.
E uma dor, sem cor
sem matizes, mas intensa,
lhe apareceu. Como um raio.

Ah! Pobre coração!
Já caíra antes de ribanceiras maiores,
mas as pedras não são as mesmas,
estão cada vez mais sutis.
As senhoras do seu tropeço
têm belos disfarces.

Tento iluminar o local
com as Luzes da Razão.
Transformar tudo – os espinhos, o negrume.
Pôr tudo no seu devido lugar.

É isso que dá!
Coração tentar pensar!

SEGREDO

Vou te contar um segredo.
Guarde-o bem.

A poesia, a poesia tem tamanho certo!
Se cortares aqui e esticares acolá,
Ela briga, resmunga e volta ao tamanho original.

Noutro dia tentei colocá-la
Em recipiente frondoso,
Com florões e detalhes de um marfim puríssimo.
Recusou-se!
“Criatura, criatura!?” – disse eu espantado.
“Sou o teu criador, me pertences!”
Não se compadeceu de minha angústia.

Tentei à força.
Enfiei uma palavra aqui,
Uma metáfora ali,
Uma hipérbole,
Uma prosopopéia nas bordas
Que talvez funcionasse como vaselina.

Não houve jeito!
Sobrava uma perna, um braço, um pedido de socorro.

Resignei-me.
Tirei os adereços, os enfeites.
Recoloquei o verbo original.
E a deixei deitada na folha simples.
Olhava-me com arrogância.

Reconheci. Estava completa.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Germinal - Émile Zola

Havia encomendado alguns livros pela internet, mas não chegaram na data prevista. Como tinha uma viagem de trabalho marcada, não podia aguardar, passei na feirinha de livros que estava funcionando na Praça Saens Peña e comprei "Germinal", um clássico do autor francês Émile Zola. Em um naturalismo forte, o romance retrata a vida miserável de mineiros franceses de fins do século XIX. Não posso deixar de citar:

"Na planície rasa, sob a noite sem estrelas, de uma escuridão e espessura de tinta, um homem caminhava sozinho pela estrada real que vai de Marchiennes a Montsou, dez quilômetros retos de calçamento cortando os campos de beterraba. À sua frente, não enxergava nem mesmo o solo negro e somente sentia o imenso horizonte achatado através do sopro do vento de março, rajadas largas como sobre um mar, geladas por terem varrido léguas de pântanos e terras nuas. Nem sombra de árvore manchava o céu; a estrada desenrolava-se reta como um quebra-mar em meio à cerração ofuscante das trevas."

Esse primeiro parágrafo é fantástico e o livro segue numa linguagem que se desenvolve apaixonadamente.
Eu recomendo!

O BAILE

Elas dançam em minha mente.
Em um baile para o qual não fui convidado.

É quadrilha de festa junina,
dão as mãos umas-às-outras-assim.
Voltam ao lugar original,
repetem a posição.
Querem ser repetidas repetidas vezes,
muitas vezes, e vezes e vezes.

Cansado, deixo que continuem assim
Formando pensamentos,
hipóteses,
teorias,
ilações,
tensões.
Criando emoções.

Por fim, parece não mais se entenderem.
A luz vai se apagando.
Pegam bengalas e vão desaparecendo na porta,
vão desaparecendo... desaparec....

Algumas, resistentes, ainda protestam.
Protestam contra o fim do baile.
Fazem-me levantar,
pegar a pena, sem pena.
Querem sair de mim à força.
Sou obrigado a pari-las.

Materializo, enfim, minha dor.
Minha felicidade, tristeza ou rancor.

Ah! Essas palavras!
Que não me deixam em paz!